Entre a Cruz e o Arado: Memória de Vida e Morte na Tavira Medieval
Neste mês de março, em que se celebra o Dia Mundial da Agricultura (20), o Museu Municipal de Tavira destaca uma das peças mais singulares da sua coleção: uma estela discoide medieval circular (52 cm x 35 cm) decorada com a imagem de um arado, símbolo que estabelece uma ligação entre práticas funerárias e a atividade agrícola.
Descoberta durante escavações arqueológicas na Ermida de Santa Ana, esta cabeceira de sepultura integrava o antigo cemitério medieval junto ao templo. As estelas funerárias, elementos presentes desde a Antiguidade, tinham uma função primordial: assinalar a presença de uma sepultura. Na Baixa Idade Média, período ao qual pertence este exemplar, adquiriram características distintivas que permitem sua fácil identificação: uma estrutura composta por duas partes principais - o disco superior, parte visível e decorada, e o espigão inferior, que se enterrava no solo para fixação.
Estes marcadores funerários encontram-se por todo o território nacional, seja em contextos arqueológicos de antigos cemitérios localizados nos adros ou em redor de igrejas e ermidas, seja como elementos pétreos posteriormente reaproveitados em outras construções.
O que torna esta estela excecional é sua iconografia dual. No anverso, apresenta uma cruz grega de braços iguais e extremidades arredondadas - símbolo religioso predominante da época. No reverso, porém, revela-se a verdadeira raridade: a representação de um arado, com detalhes técnicos que permitem identificar componentes específicos como o dente (a parte que penetra no solo), a rabiça (a alavanca utilizada para manobrar o arado), o temão (trave principal), o teiró e a chavelha.
Esta representação profissional não era apenas decorativa. Na sociedade medieval, onde a maioria da população trabalhava na agricultura, o arado simbolizava não apenas o ofício do falecido, mas sua contribuição vital para a comunidade. A presença deste instrumento agrícola numa sepultura evidencia os laços entre identidade pessoal, trabalho e espiritualidade na mentalidade medieval.
Datada, previsivelmente, entre os séculos XIV e XVI, esta estela constitui um importante testemunho histórico de uma época em que os enterramentos ainda ocorriam predominantemente em cemitérios externos, antes da generalização das sepulturas no interior das igrejas. Simultaneamente, reforça a antiguidade da própria Ermida de Santa Ana, já referida em 1518 como "tam amtigua que nom há hy memoria de quem a edificou", segundo registos da Ordem de Santiago.
Esta estela funerária representa uma intersecção entre fé e trabalho, vida e morte, espiritualidade e quotidiano - dimensões fundamentais da experiência humana capturadas numa única peça de pedra com mais de 500 anos de história. Embora a peça esteja normalmente exposta na Ermida de Santa Ana, informamos que este espaço encontra-se temporariamente encerrado ao público.
Acompanhe a programação do Museu Municipal de Tavira para informações sobre a reabertura do espaço e oportunidades futuras de apreciar presencialmente este importante testemunho da Tavira medieval.
Museu Municipal de Tavira, MMT2585