A Paixão e a Piedade num retábulo tavirense
Durante o mês de abril, período em que se celebra a Páscoa Cristã, o Museu Municipal de Tavira destaca uma obra de notável qualidade estética e significado religioso: o retábulo lateral da Ermida de Santa Ana. Este conjunto, que resulta da conjugação de elementos de diferentes épocas, distingue-se por apresentar o mais completo ciclo pictórico da Paixão de Cristo que se preserva atualmente em Tavira.
Executado em madeira policromada, o retábulo, cuja estrutura atual data da segunda metade do século XVIII, é composto por um só corpo e tramo, exibindo elementos característicos do período tardobarroco/rococó, particularmente visíveis na mesa de altar. Na sua configuração apresenta-se como um políptico, congregando um grande painel central do século XVII, oito painéis laterais e um painel na predela (banco do retábulo) contemporâneos da estrutura setecentista.
Ao centro impõe-se a representação de Nossa Senhora da Piedade, uma requintada pintura a óleo sobre madeira, datada do século XVII, de autor anónimo. A composição e o tratamento pictórico evocam o estilo dos círculos influenciados pela obra do espanhol Luis de Morales, "El Divino" (c. 1510-1591), caracterizado pelo dramatismo religioso e pela minuciosa delicadeza na execução. Esta obra, anterior à atual estrutura do retábulo, constituirá uma renovação artística de um painel anteriormente documentado na visitação da Ordem de Santiago de 1554, onde se menciona "um painel da maneira da Flandres, com as molduras muito bem douradas e nele pintado Nossa Senhora da Piedade"
A Pietá, representação que encarna uma das mais profundas e universais devoções marianas, evoca o momento comovente em que a Virgem Maria acolhe nos seus braços o corpo inerte de Jesus, recém-descido da cruz. Esta pintura, de assinalável qualidade técnica e expressividade, evidencia um requintado domínio do desenho, da luz e da paleta cromática. A gestualidade das figuras transmite um dramatismo contido: a mão esquerda de Jesus, disposta em subtil gesto de bênção, e o semblante de Maria, com os olhos semicerrados e lacrimejantes, conjugam-se numa composição que irradia uma profunda e silenciosa emoção.
Os painéis laterais e o da predela desdobram-se numa narrativa visual dos episódios da Paixão de Cristo, desde a Última Ceia até à gloriosa Ressurreição. Estas composições pictóricas, que apresentam um estilo distinto da tela central, são muito provavelmente contemporâneas da estrutura retabular que as enquadra.
Embora a disposição atual não siga a sequência narrativa tradicional, os episódios representados incluem:
•Última Ceia – Cristo executa um solene gesto de bênção, sustentando o pão na mão esquerda, simbolizando este momento fundacional como a instituição da Eucaristia. No lado oposto da mesa distingue-se Judas Iscariotes, identificado pelas suas vestes amarelas e pela bolsa contendo as trinta moedas da traição.
•Cristo no Horto – Jesus em oração, recebe das mãos de um anjo celestial o cálice do sacrifício, prenunciando a sua Paixão iminente.
•Prisão de Cristo – Ladeado por soldados, Jesus mantém uma expressão de serena dignidade, enquanto os seus algozes lhe atam as mãos.
•Flagelação (Cristo atado à coluna) – Momento que assinala o início dos tormentos físicos infligidos a Jesus.
•Coroação de Espinhos (Escárnio de Cristo) – A composição revela Jesus trajando o manto, cingindo a dolorosa coroa de espinhos e empunhando um cetro, elementos que satirizam sarcasticamente o título "Rei dos Judeus", enquanto é submetido à tortura pelos soldados.
•Ecce Homo – Apresentado por Pilatos com a célebre proclamação "Eis o homem", Cristo é retratado de pé, envergando o manto, a corda e a coroa de espinhos.
•Cristo a Caminho do Calvário – Representação do percurso para o Gólgota, onde Jesus, oprimido pelo peso da cruz, sucumbe ajoelhado.
•Crucificação – A dramática cena da condenação de Jesus, onde sobressai a inscrição INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum) sobre a cruz e a simbólica caveira aos seus pés, evocativa do Gólgota (lugar da caveira).
•Ressurreição – Cristo ressuscitado e vitorioso, envolto num manto vermelho, ergue uma cruz adornada com bandeira, símbolos do triunfo sobre a morte.
Estamos perante um retábulo repleto de informação, história, riqueza simbólica e iconográfica, que habitualmente pode ser contemplado na Ermida de Santa Ana. Importa, contudo, informar os visitantes que este espaço se encontra temporariamente encerrado ao público.
Acompanhe a programação do Museu Municipal de Tavira para informações sobre a reabertura do espaço e oportunidades futuras de apreciar presencialmente este tesouro artístico.
Museu Municipal de Tavira, MMT2587